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O MITO DA CRIAÇÃO DE ADÃO E LILITH

>> quinta-feira, 21 de outubro de 2010


    Na aurora do mundo, Jeová Deus pensou em criar o homem para que pudesse se tornar o coroamento da Criação. E Deus disse: “façamos o homem, que seja a nossa imagem, segundo a nossa semelhança”. Assim ele estendeu a sua mão sobre a superfície da Terra talvez ali onde estivesse o monte Moriah e, apanhando poeira fina, misturou-a com outra terra das quatro partes do mundo, borrifada com água de cada rio e cada ar existente. Uma massa de epher, dam, marah (pó, sangue, bile) que deu a vida a Adão, o primeiro homem vivente. Jeová Deus colocou Adão no Jardim do Éden, para que lhe fizesse honra. Qual era a natureza do primeiro homem? Conheceu a aspereza da solidão e da própria singularidade? Talvez observasse tantos animais entre seus semelhantes – cavalos, cabras, pássaros, répteis e peixes – que se admirava de se ver só. Quando Deus criou Adão, fê-lo macho e fêmea. Quando Adão percebeu sua solidão em relação aos animais, pediu ao PAI uma companheira. Jeová no momento que a pediu, fez com que caísse em sono profundo, cortou-o ao meio e chamou a esta nova metade de Lilith, dando-a em casamento para Adão. Por desejo de Adão nascia a mulher. Ele havia descoberto a própria solidão, mas também a própria alma.
 
O amor de Adão por Lilith, foi logo perturbador, não havia paz entre eles porque quando eles se uniam na carne, evidentemente na posição mais natural, a mulher por baixo e o homem por cima, Lilith mostrava impaciência. Todas as vezes que eles faziam sexo, Lilith mostrava-se inconformada, em ter de ficar por baixo de Adão, suportando todo o seu peso. Assim perguntava a Adão: - Porque devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo? Adão permanecendo em silêncio, evoca a insistência de Lilith: - Por que ser dominada por você?. Contudo eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual. Ela pede para inverter as posições sexuais para estabelecer uma paridade, uma harmonia que deve significar a igualdade entre os dois corpos e as duas almas.
Malgrado este pedido, ainda úmido de calor súplice, Adão responde com uma recusa seca. Lilith é submetida à ele, ela deve estar simbolicamente sob ele, suportar o seu corpo. Portanto existe um imperativo, uma ordem que não é lícito transgredir.  Vendo que o companheiro não atendia aos seus apelos, que não lhe daria a condição de igualdade, ela se rebela contra Adão. Pronuncia nervosamente o nome de Deus, faz acusações a Adão e vai embora. Jeová então proferiu sua ordem: “O desejo da mulher é para o marido. Volta para ele”. Lilith não responde com a obediência, mas com a recusa: “Eu não quero mais ter nada a ver com meu marido”. Jeová  Deus insiste:“Volta ao desejo, volta a desejar teu marido”. Mas a natureza de Lilith mudou no momento em que blasfemou contra Deus, e não existe mais obediência.

 No momento crucial no qual Adão lhe negou o desejo, ela fugiu em direção ao Mar Vermelho, agora odiosa de seu esposo. É o momento que o sol se despede e a noite começa a descer o seu manto de escuridão soturno. A ruptura do equilíbrio pré-estabelecido. Adão sente a dor do abandono; entorpecido por um sono profundo, amedrontado pelas trevas da noite, ele sente o fim de todas as coisas boas. Desperto Adão procura por Lilith e não a encontra. Pede a sua volta..
 
Como o Reino celestial seria concedido aos que se afastassem dos horrores da Terra, e aos outros se propunha como penalidade, um lugar de extremo sofrimento, Jeová Deus, manda em direção ao Mar Vermelho uma formação de 3  Anjos: Sanvi, Sansavi e Samangelaf, para tentarem convencê-la a voltar. Eles alcançam Lilith, acham-na nas charnecas desertas do Mar Arábico, onde a tradição popular hebraica diz que as águas chamam, atraindo como imã, todos os demônios e espíritos malvados. Lilith se transforma, não é mais a companheira de Adão, está num lugar de trevas e sombras. Os anjos gritam seu nome, com a chama e a espada fulgurante, ordenando-lhe que volte para Adão, pois se não o fizer, será afogada. Mas Lilith responde: - “Como posso voltar para junto de meu homem e viver como esposa, depois deste meu gesto e de viver aqui”? Os anjos proclamam ainda: “Se desobedeces e não voltas será a morte para ti”.
 
É fortíssima a tensão dramática neste evento. O confronto é total, as forças do céu se medem com as forças da terra e das trevas. Uma suspensão onde há de um lado, ameaça a autoridade celeste ao destino de sombras, do outro a afronta. Lilith se posiciona no conflito, sabedora do próprio papel:

 E como poderei morrer se Deus me encarregou de me ocupar de todas as crianças nascidas homens, até o oitavo dia de sua vida, a data de sua circuncisão, e das mulheres até os seus vinte anos?
 
Lilith se recusa a seguir os 3 anjos e lhes diz: “Se eu vir os vossos três nomes ou seus semblantes sobre um recém nascido como um talismã, prometo poupá-lo. Os anjos aceitam de bom grado a má sorte e aceitam pelo menos a concessão parcial de Lilith. Eles voltam a Éden, mas Jeová já havia decidido punir Lilith exterminando seus filhos. Lilith torna-se a noiva de Samael, o senhor das forças do mal. Como conseqüência, passa a dar a luz aos Lillins, seus filhos com Samael. Os Lillins, nascem em proporção de 100 por dia e passam a ser alvos da cassa de Jeová. Representando assim a luta do bem e do mal.
 
Alguns escritos contam que Adão queixou-se a Deus sobre a fuga de Lilith e, para compensar a sua tristeza, Deus resolveu criar Eva, a segunda mulher de Adão, moldada exatamente como as exigências da sociedade patriarcal, é o modelo feminino permitido ao ser humano pelo padrão ético judaico-cristão.
 
Lilith nasce da mágoa do feminino e há uma lenda que diz que o Sol foi reclamar a Deus que o brilho da lua o ofuscava. Deus pede a lua que reduza seu brilho. Da redução do brilho da lua, surge Lilith, a Deusa da lua Negra, que vaga até hoje. A partir daí, todo mês a mulher tem uma vivência de fertilidade e morte, com o seu ciclo menstrual.

  EMBASAMENTO TEÓRICO AO MITO
 
O analista junguiano Carlos Byington nos remete ao conceito de Dinamismo Matriarcal, dentro do Arquétipo da Grande Mãe. Este dinamismo é o mais arcaico da consciência, pertence ao substrato da mesma, como formadora da história humana. Nele está contida a dualidade, que inclui o masculino e o feminino, o materno e o paterno.
  ... a polaridade existente no Dinamismo Matriarcal, aproxima consciente de inconsciente, o Eu e o Outro, possibilitando o deslocamento dos símbolos de uma dimensão para a outra, apresentando-se de forma binária. A dinâmica patriarcal tem como princípio de funcionamento, o dever, a tarefa e a coerência, expressam moralmente pela valorização extraordinária da palavra e do seu mantenimento, formando o complexo fenômeno da honra, da vergonha e da culpa patriarcal (BYINGTON, 1987:51-61)
Enquanto o urobóros feminino matriarcal rege a fase psicológica do matriarcado, o masculino, no qual o lado ativamente procriativo e móvel se manifesta, conduz ao patriarcado, contido no Arquétipo do Grande Pai. A condição para empatizar o dinamismo matriarcal é a capacidade de a personalidade emergir e se deixar ficar na inconsciência. A intuição é a função consciente de aprender a realidade através do inconsciente. Permanecer no inconsciente é uma característica do Dinamismo Matriarcal que depois vai emergir para operar através de qualquer uma das outras quatro funções (pensamento, sensação, sentimento e intuição). Regido pelo prazer e intensa proximidade afetivo-corporal, propicia uma dupla função estruturante. A sensualidade encontra nas forças da natureza, um veículo simbólico para se expressar. A vivencia sensorial dos símbolos na natureza complementa e nos sintoniza com os símbolos do corpo, propiciando vivencias espontâneas e enriquecedoras do Ser no mundo. É a partir da expressão da ligação da consciência com o arquétipo central – Self – que chegamos a identidade ontológica, a possibilidade de ser tocado e de tocar, num só ritmo, numa mesma relação com o que tensiona, emociona e traz significado. 
  ... O modo pelo qual uma idéia, uma inspiração ou uma embriaguês que sobem do inconsciente e tomam a personalidade como se por um subido e violento assalto, levando-o ao êxtase, a insanidade, a poesia ou à profecia, representa uma parte da atuação do espírito. O traço correspondente da consciência matriarcal é o fato de depender para ter qualquer intuição ou inspiração, daquilo que emerge do inconsciente de forma misteriosa e quase autônoma, quando, onde e como quer.  (NEUMANN, 1979:61)
 
Erich Neumann enfatiza os primórdios da consciência apontando fases sucessivas de desenvolvimento, onde o ego se liberta do aprisionamento inconsciente. Matriarcado e Patriarcado são estágios psíquicos caracterizados por diferentes desenvolvimentos do consciente e do inconsciente. Feminino e Masculino, como grandezas simbólicas. Neste caso poderíamos pensar em Lilith como uma grandeza feminina simbólica, arquetípica, que se emancipa, se expande, através da transgressão e da desobediência ao patriarcado simbólico, que no mito judaico cristão, é representado pelo DEUS-PAI. Adão também é submetido a este Pai, porém não tem a possibilidade de expansão de consciência, que possivelmente sua anima poderia lhe dar, já que, para Jung, o arquétipo da anima é criativo.
 
A anima parece nascida do inconsciente e apresenta-se como uma possibilidade ao ego, resultante da tensão rumo a individuação. Para Jung os opostos da psique contem um ao outro. Sua integração possibilita um equilíbrio. Toda virtude pode ser um vício e todo vício pode ser uma virtude. A consciência desta polaridade fez com que Lilith, questionasse a verdade do Pai. Embora Adão não a siga, mais adiante, no Mito de Adão e Eva, ele se permitirá transgredir ao Pai, seguindo Eva, que assim como Lilith, é outra grandeza simbólica do feminino. Desta forma, ambos vão possibilitar ao psiquismo, haver-se com as dores do mundo e a partir daí expandir sua consciência.  
... a relação conjugal só pode se exercer criativa se as grandes fixações dos ciclos parentais estiverem resolvidas em certa medida. Como força que puxa para frente, é muitas vezes a relação conjugal que ajuda a resolver essas fixações. O curador se não for ferido, também não poderá ser um companheiro profundo na vida conjugal. (VARGAS, 1985)
 
Assim como Lilith, que baba sangue em sua saliva, a mulher expulsa este sangue simbolizado mensalmente pela menstruação, sangue impuro, que representa uma ameaça à reprodução, inviabilizando-a de gerar.  Para a igreja, o sexo deve ter a pureza do resultado da fecundação e não pelo ato carnal entre um homem e uma mulher. No período da menstruação não deve haver acasalamento, colocando o homem fora deste processo. Ele não pode ter contato com este sangue. Este sangue é marca do feminino, assim como também o vermelho escarlate.
 
A vivência de morte do feminino, não deixa de ser uma vivência de morte também do masculino, já que a polaridade anima-animus é criativa em sua integração. Ambos os arquétipos, são indutores de um padrão de consciência igualitária, regida pela Alteridade, que inspira o individuo a seguir seus desejos e ideais, de modo e elevar seu nível de consciência.

Podemos trazer a questão do mito de criação para melhor percebermos a hierarquização dos papéis sexuais e a forma do masculino se impor.  Na mitologia primitiva grega, o mundo é criado por uma mulher, a Deusa Geia. Posteriormente a entidade divina é transformada numa forma andrógina, representada no hinduísmo pelos opostos Yin e Yan. Adão ao conter em si Lilith, contêm também sua anima, sua androginia.

A idéia de traição é na verdade à imagem idealizada do Pai. Lilith abandona Adão e vai para o Mar Vermelho, fazendo ali um ritual de passagem. As imagens trabalhadas e associadas no contexto terapêutico demonstravam isto.
 
  No momento em que Lilith desobedece e é punida por desejar igualdade, a possibilidade de integração se rompe, criando um espaço de forças contraditórias, que tentam oprimir a expressão do feminino. Tornando-se um mito carregado de sombras, e banido do inconsciente coletivo.  Um outro mito judaico-cristão surge.
  
No estágio seguinte, surge o Deus da crença judaico-cristã – JAVÉ, que cria a mulher a partir da costela torta de Adão. Ao adquirir conhecimento, o homem desconstrói a relação primordial homem-mulher-natureza. Surge o masculino imperativo, que perde a relação mais próxima de sua anima, e vai competir com a mulher, tornando-a inferior a ele. A mulher passa a sofrer as conseqüências de sua paixão, e assim como Lilith, começa a ser definida em função de sua sexualidade. A afetividade e a integração de sentimentos tão presentes na mulher, manifestos arquetipicamente na expressão criativa do feminino, quando em confronto com o masculino arcaico, pouco lapidado, acabam por desestruturar o sistema e provocar a desordem. A mulher passa a ser vista como símbolo de tentação destrutiva, capaz de desestabilizar a relação verdadeira que existia entre Deus e o Homem. Por isto Lilith se torna uma ameaça.

 A clínica traz relatos de muitas mulheres que dizem não conseguir o orgasmo. Nos tempos atuais, as pesquisas buscam de que forma estas mulheres podem consegui-lo, através da terapêutica sexual, na corrida pelo pleno gozo. O que Lilith reivindicou e saiu em busca, às mulheres ainda hoje continuam buscando. Muitas vezes jogos e fantasias sexuais são levados para a relação em busca dessa satisfação, que está no inconsciente coletivo no Mito de Lilith.

O indivíduo tem em sua essência psíquica individual e coletiva, o transgredir normas, desfazer paradigmas, entrar em contato com a Sombra, para que o desejo se manifeste e o gozo ocorra. A neurose se estabelece pelo desvio destas potencialidades, que passam a agir de forma sombria. Terapeutas sexuais orientam como descobrir o prazer no corpo, explorando-o mais, reconhecendo áreas erógenas e propondo o imaginário do setting sexual menos formal, mais ousado, menos Adão e Eva e mais Adão e Lilith. O encontro de amantes muito mais intensos do que o encontro entre casais formais. A transgressão é uma necessidade arquetípica. A mulher precisa tornar-se amante do homem, e não apenas sua mulher. O homem busca a amante, porque seu imaginário a valoriza sexualmente. A mulher valorizada por ele,  tenta cada vez mais tornar o seu lugar de amante como especial.  A traição não está no literal, mas no mundo das idealizações, das imagens, dos desejos e das frustrações.
 
Lilith em razão de sua desobediência, por desafiar as leis divinas e defender a expressão da sexualidade na igualdade, perde a possibilidade de êxtase e gozo remediados pelo poder masculino. Passa a perambular pelo mundo à procura de paz. Começa uma vida de andarilha errante. Acasala-se com demônios, parindo centenas de hodiernas por dia, os Lillins. Seus filhos sagrados, tidos com Adão, foram mortos pela ira do pai, e os que passa a ter com Samael,  são alvos de cassa. É a luta do sagrado e do profano.  Ela passa então a ser castigada por sua opção. Circula entre insetos, fezes e imundície, que fazem parte da cena de gozo de seus acasalamentos. O interessante disso é que ela vive o prazer, que antes reivindicava. Sua sexualidade é simbolizada como expressão sombria, mas é também um prêmio pelo seu desagravo.
 
Assim como a traição, o sexo como fonte de prazer, é prática pecaminosa e rejeitada pela religião cristã. A Igreja propõe a abstinência sexual como elevação do espírito, como um contato espiritual puro, genuíno com Deus. Porém, percebemos o quanto o corpo se ressente por esta abstinência, e muitas vezes a transgressão ocorre por quem mais a defende. De forma sombria encontramos ativos sexuais transgredindo estas regras ocupando posições que são consideradas imaculadas, onde se propõe a ter como escolha, total abstinência sexual. Acontece que o corpo e o psiquismo não respondem assim. Há o individuo em sua total necessidade de relação com seu próprio corpo.
 
A necessidade de surgir uma nova mulher para Adão, não impediu novamente a transgressão. Igualmente desobediente e irreverente, de uma forma mais doce que Lilith, surge Eva. Porém, sua natureza, também a faz pecar. Ao comer o fruto proibido, fecha o ciclo da transgressão necessária. O macho seria a vítima enquanto a mulher, metaforizada na figura da fêmea primordial, carregaria a culpa pela transgressão, ligada ao pecado que advém da carne em razão de sua famigerada sexualidade.
 
Quando Adão escolhe ir junto com Eva, sendo também banido do Éden – O Jardim das Delícias, ele  renuncia a Deus e mobiliza a primeira e mais cruel maldição do Homem. Se quisesse viver, teria que ficar ao lado do Pai. Como Mãe primordial, a mulher Lilith-Eva, deve ser abandonada.  Na castração simbólica, tal qual a fase edipiana, o menino deve abandonar a mãe para encontrar o Pai. A mulher passa a ser representante do feminino pela sexualidade, e o homem pelo trabalho
 
O desfecho final do Mito aponta para a saga de Lilith e sua escolha.  A saída de Lilith do Éden, a leva de encontro ao Mar Vermelho, é lá que se refugia. Podemos pensar que esta parte, traduz no mito um ritual de passagem. Mudar sua forma física e o ambiente onde até então vivia nos leva a ver Lilith como uma iniciática.
 ...O Mar Vermelho é o passar pelas águas da corrupção, que é o cronos. O além do Mar Vermelho é um além da criação. Lá todos se encontram juntos, “os deuses da perdição” e o “Deus da salvação”. “O Mar Vermelho significa a água da morte para os inconscientes, enquanto que para os “conscientes” é a água batismal da regeneração e do “ passar para além”. (JUNG, V.1, 1985:192)

 UMA LEITURA MÍTICA SOCIAL

 As questões teóricas apresentadas possibilitaram-nos através da vivência do mito de Adão e Lilith, discutir questões pertinentes à trajetória da expressão do feminino, nas questões psicológicas, míticas, religiosas e sócio-culturais, que traduzem o rompimento e a transgressão às Leis, no âmbito do Patriarcado, em busca da Individuação.  A partir da experiência do Mito de Criação de Adão e Lilith, podemos refletir sobre os sintomas que hoje afetam os relacionamentos entre homens e mulheres na expressão de sua sexualidade, liberdade e direitos. Observamos o comportamento humano como uma identificação com os padrões estabelecidos nos mitos, contos de fada, folclore, religião e arte.

Foi escolhido o mito de Criação de Adão e Lilith por ser um mito judaico-cristão que se tornou sombrio e que trata da relação entre um homem e uma mulher em seu posicionamento diante da Lei do Pai.  Podemos refletir sobre a questão do pecado  oriundo do feminino e o preço pago até os dias de hoje.
 
Com o passar do tempo as Deusas são banidas do poder e acabam por assumir a posição de esposas, servas, submissas, subjugadas por entidades masculinas. No Mito de Lilith isto não ocorre, eles nascem juntos, vindo do pó e excrementos. Nascem com seus sexos diferentes para que haja uma integração de suas polaridades. Ao desejar que a mulher no coito pudesse variar sua “posição com o homem”, ela é banida do Éden.  Ela deveria deitar-se “embaixo” de seu homem, na posição tida como a natural, mas reivindica a inversão desta posição, e incompreendida recebe o “não”. Ela queria experimentar o gozo e este lhe fora negado. O sexo como fonte de prazer é prática criminosa. Lilith vai para as trevas, e Adão fica a lado do Pai.   Enquanto vivendo no Éden, não vivenciam os obstáculos que estruturam o psiquismo e os impulsionam a diferenciarem-se de maneira criativa. A relação parental estabelecida está na figura do Pai. Não há a Mãe.  Eles são o casal primordial. 

Quando JAVÉ cria uma outra mulher para Adão, não impede que a transgressão e o rompimento ocorram, trazendo novamente à traição à imagem idealizada do PAI. Igualmente desobediente e irreverente, de uma forma mais doce que Lilith, Eva também trai o Pai, por sua natureza feminina. ... Ela se desliga inteiramente das fontes arcaicas do prazer (o corpo da mãe). Por isso, também não se divide se si mesma como se divide o homem, nem de suas emoções. Para o resto da vida, conhecimento e prazer, emoção e inteligência são mais integrados à mulher do que no homem e por isso, são perigosos e desestabilizadores de um sistema que repousa inteiramente no controle, no poder e, portanto no conhecimento dissociado da emoção e, por isso mesmo, abstrato. (PAIVA, 1993:24)

 A possibilidade de diálogo entre anima e animus, vem de uma consciência criativa, que vai possibilitar a forma como os arquétipos se manifestam. É preciso deixar o pai em sua literalidade e ir à busca do mundo. Jung afirma expressamente que tudo o que é pronunciado sobre “Deus” é sempre uma afirmação humana de origem psíquica:

Na castração simbólica, tal qual a fase edipiana, o menino deve abandonar a mãe para ir ao encontro do Pai. Por mais que deseje a mãe, é o Pai que vai oferecer-lhe o mundo masculino. Ao abandonar a mãe, incorpora seu masculino a partir de modelos de ação, concretude e delimitação. Há necessidade de manter seu lugar, para reconhecer-se como Homem. Ao identificar-se com o Pai, e afastar-se da mãe, estabelece modelos de relação diferenciada com este feminino, estendendo-o a outras mulheres.  

A religião também ocupa aqui um lugar a sombra. Revendo os evangelhos percebemos que a mulher ocupa um lugar de submissão e desvalorização. O marido é a cabeça da mulher assim como Cristo é a cabeça da Igreja.

Maria é elevada ao nível de Deus para poder gerar Deus, porém o homem a descaracteriza de sua posição feminina, na mítica cristã, onde Maria, a divina Grande Mãe, mesmo emprestando seu corpo para o nascimento de Jesus, não pertence à Santíssima Trindade, onde apenas Pai, Filho e Espírito Santos a compõem. Feminino não tem seu lugar reconhecido, embora, o princípio masculino e feminino necessite desta integração no seu psiquismo.

A idéia de uma fragilidade da mulher corrobora a cena de submissão, onde quem comanda e fica por cima é o homem, simbolicamente representado pelo coito permitido na posição que Lilith se nega a ter. Rejeitando as Leis do Patriarcado, encontramos na História a princesa Guinevere, que obedecendo a seu pai e casando-se com Arthur, transgride esta lei, tornando-se amante de Lancelot, o homem a quem realmente ama. Encontramos Antígona abalando todo um sistema patriarcal soberano, para salvar Polinice. Transgredindo o feminino, de forma arquetípica, encontramos várias expressões do feminino, em busca de um outro caminho. 

... Naturalizadas, as mulheres não foram incorporadas ou tornadas significativas na cultura humana/masculina. O confinamento do sexo feminino em uma relação limitada com alguns aspectos do meio ambiente, fruto da diferenciação sexual, traduziu-se em desigualdade de status e poder tornando-se hierarquia que, por seu caráter invariante, passou a ser percebida como um dado do comportamento humano, inscrita no corpo e por ele ditado, e que as representações mitológicas e ideológicas só fizeram confirmar. (OLIVEIRA, 1993:40)
 
A mulher se ressente ainda com a discriminação que veio vivendo em sua história. Valoriza hoje o reconhecimento de sua identidade experimentada a partir de uma nova concepção de vida calcada na fragmentação do eu e na diversificação de interesses. A feminilidade não pode ser uma ocupação protegida e destinada ao prazer. A pós modernidade cria uma tendência revisionista, contestatória, visto que os valores, conceitos, princípios e concepções passam a ser questionados. Nada mais é aceito passivamente.  Transgredir é tentar subverter uma história de passagens amargas.
 
A mulher precisou marcar seu caminho em diversos setores, sendo dos mais marcantes que se pode exemplificar, as artes e a política, colocando-se ao lado masculino reivindicando os mesmos direitos. Exemplos como a musicista Chiquinha Gonzaga, a artistas plásticas Camile Claudel e Frida Kahlo, a Senadora Heloisa Helena, seriam modelos de rompimento e transgressão.

  ... Masculino e Feminino são grandezas simbólicas, não devendo ser identificadas como “Homem” ou “Mulher” como portadores de características sexuais específicas. Nesse sentido, um estágio psicológico, uma religião, uma neurose, e também um estágio no desenvolvimento da consciência, podem ser chamados “matriarcal” e “patriarcal”, não significa o comando sociológico dos homens, mas o predomínio da consciência masculina que consegue separar os sistemas do consciente e do inconsciente, e que é relativamente estabelecida de maneira firme em posição e independentemente do inconsciente. Por essa razão, a mulher moderna deve também atravessar todos esses desenvolvimentos que conduzem à formação da consciência patriarcal, que agora é típica e tomada como certa na situação ocidental, sendo dominante na cultura patriarcal. (NEUMANN, 1979:56)
 


Trabalho elaborado pela psicóloga junguiana Rosangela Franklin Rozante, apresentado na II Jornada do Sízigia, Núcleo de Estudos junguianos de Fortaleza – CE., ocorrido no período de 13 a 15 de junho de 2008.

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